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Software Livre é política de Estado, não de governos; por Deivi Kuhn e João Cassino

Por Deivi Lopes Kuhn e João Cassino*

A comunidade brasileira de Software Livre foi surpreendida com a publicação, em 16 de junho, da medida provisória nº 983/2020, que dispõe sobre as assinaturas eletrônicas em comunicações com entes públicos. Apesar do texto tratar majoritariamente da forma como o cidadão certifica sua identidade em transações digitais, o Artigo 8º trata sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos. Define que todos os programas de computador desenvolvidos pela administração pública devem possuir licenciamento em código-aberto, permitida a sua utilização, cópia, alteração e distribuição sem restrições por todos os órgãos e entidades abrangidos no artigo.

Apesar da estranheza com que muitos receberam a notícia, a medida é simplesmente óbvia. Há mais de 20 anos, diversos governos do mundo – dos EUA à China, de Israel a Cuba – têm promovido o uso de Softwares Livres e de código-aberto como forma de defesa de sua soberania nacional e para maior segurança informacional. O modelo de licenciamento utilizado pelo Software Livre garante pleno acesso à tecnologia utilizada nos sistemas digitais, criando formas colaborativas e mais justas de desenvolvimento tecnológico. Isso porque as licenças das tecnologias livres garantem a propriedade coletiva desses sistemas, o que é totalmente apropriado para criações patrocinadas por dinheiro público.

As vantagens de se adotar Software Livre são amplamente documentadas, pois garantem um modelo mais competitivo, normalmente baseado em serviços, e que cada vez mais se consolida nos mais variados segmentos tecnológicos. Hoje, por exemplo, o sistema operacional livre Linux é a base utilizada pelo Google Android, o mais popular no segmento de dispositivos móveis. Outro exemplo é que praticamente todos os 500 maiores supercomputadores do mundo utilizam distribuições GNU/Linux, de acordo com o site www.top500.org, um ranking organizado por diversas universidades.

Por outro lado, o software proprietário esconde, com código fechado, as tecnologias utilizadas e sua forma de funcionamento, deixando os usuários, inclusive os estados nacionais, dependentes das decisões de empresas e sem possibilidades de auditar o que está sendo processado em seus computadores. Como confiar, por exemplo, em um sistema de controle de mísseis com um software que não permite saber o que faz exatamente. A qualidade e a segurança superiores dos softwares desenvolvidos no modelo livre são reconhecidas inclusive pelo departamento de defesa dos EUA, que publicou, em 2006, um planejamento de adoção dessas tecnologias como forma de garantir a sua soberania tecnológica.

Por tais razões, mesmo que o atual governo brasileiro consiga privatizar as estatais federais de TI, o que somos veementemente contra, tornar código-aberto os sistemas das empresas públicas dará possibilidade para que outros órgãos continuem utilizando e evoluindo com base no que já foi desenvolvido com dinheiro público. Ao passo que mantê-los fechados resultará em transferência de todos os direitos de propriedade a quem comprar as estatais. Os softwares desenvolvidos pelo Estado são um patrimônio intelectual que vale bilhões de reais. Tornar esses sistemas um bem comum é uma forma de garantir que continuem a servir todo o povo brasileiro, que pagou por eles.

Nesse sentido, o texto da Medida Provisória deixa dúvidas ao afirmar que a distribuição desses sistemas ocorrerá apenas entre os próprios órgãos de governo, não tornando claro como ocorrerá o acesso da sociedade em geral. Outra preocupação é que o modelo de licenciamento não garante que redistribuições dos softwares abrangidos nessa legislação permaneçam livres, o que poderia ser garantido ao se acrescentar cláusulas que não permitam apropriação e fechamento de código por terceiros. Recomendamos a adoção de algo similar à licença GNU General Public License (GNU-GPL), criada pela Free Software Foundation.

A decisão governamental de abrir os códigos-fonte dos sistemas públicos mostra o amadurecimento de uma política de Estado, e não de governos, que vem sendo executada há quase duas décadas em nosso país. Começacom a adoção progressiva de Softwares Livres na infraestrutura da maior parte dos órgãos governamentais (no final da década de 1990), se fortalece com a criação do Comitê de Implementação de Software Livre (2003), passa pelo lançamento do portal de Software Público Brasileiro (2007) e poderá ter novo impulso em 2020, caso o Artigo 8º da Medida Provisória 983 seja corrigido e avance rumo ao compartilhamento de conhecimento.

*Deivi Lopes Kuhn é economista, Mestrando em Administração (UnB), analista de sistemas e ex-Coordenador Executivo do Comitê de Implementação de Software Livre do Governo Federal.

*João Cassino é jornalista, Doutorando e Mestre em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), autor da dissertação de mestrado “Implementação de Software Livre no Governo Federal: um estudo de caso de adoção do comum” (2019).

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