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Um país adoecido pela violência e a hipocrisia

A sociedade brasileira está doente. Não bastasse a covid-19, que já matou mais de 110 mil pessoas em cinco meses, vivemos uma epidemia de violência doméstica. E o pior: alastrou-se entre nós a praga da hipocrisia.

Há poucos dias, uma menina de 10 anos estava grávida do tio-avô, que a estuprava há 4 anos. O fato ocorreu no Espírito Santo e o criminoso foi preso em Minas Gerais. A Justiça determinou o aborto do feto. A gravidez era de alto risco e fruto de violência. Decisão amparada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Numa reação histérica e sem amparo na moral cristã, evangélicos e militantes bolsonaristas, que dizem colocar Deus acima de tudo, responsabilizaram a criança pelo estupro. Ela teve de viajar para Pernambuco, onde a gravidez que lhe custaria a vida foi interrompida.

A extremista Sara Winter, que divulga fake news nas redes sociais e prega o fechamento do Congresso e do STF, localizou o hospital em que a criança dera entrada para o procedimento e promoveu, na Internet, todo tipo de agressão à criança, ao médico e a quem mais os defendesse. Uma pequena multidão foi ao hospital hostilizar o médico e tentar impedir a cirurgia.

Aumenta a violência doméstica

Essencial para a saúde pública, o isolamento social por causa da covid-19 aumentou bastante os casos de violência doméstica contra crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Relatório lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em junho, confirmou um crescimento de 22,2% nos índices de feminicídio em março e abril. Os dados relacionados a crianças são ainda mais assustadores.

“Sabíamos que o Brasil enfrentava uma epidemia de violência doméstica, que estava entre os cinco países a liderar o ranking das agressões a mulheres. E também que três crianças ou adolescentes são abusadas sexualmente no País a cada hora, pelos registros do Ministério da Saúde, segundo levantamento feito pelo O Globo, em março. E, acima dos números, são mulheres e crianças violentadas, na maior parte das vezes, dentro de suas casas”, comenta Hellen Frida, ativista feminista, gestora e produtora cultural, co-fundadora da Casa Frida, em São Sebastião, que acolhe vítimas da violência doméstica.

As chamadas para o 180, exclusivo para atendimento à mulher, aumentaram 34% em comparação ao mesmo período do ano passado. Em junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançaram a campanha Sinal Vermelho para a Violência Doméstica, que tem as farmácias e drogarias como locais silenciosos de denúncia para mulheres em situação de violência.

Nesta série sobre o Agosto Lilás, mês em que se comemora a Lei Maria da Penha, o Brasília Capital tenta entender a violência que ocorre no País, apesar de termos uma das melhores legislações mundiais de proteção à mulher e aos vulneráveis.

Especialistas e ativistas de direitos humanos asseguram que, sobretudo neste contexto de pandemia, o aumento da violência contra crianças, adolescentes, mulheres e idosos se dá em razão da falta de políticas públicas e governamentais à altura do cenário de calamidade pública.

Hellen conta que, somente em abril, o governo federal recebeu 19.663 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, o que representa aumento de quase 50% em relação a 2019 (13.404 denúncias).

Os dados da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos registram notificação menor em março (aumento de 85% em relação ao ano passado, que teve 11.232 registros). Em março de 2020 foram 20.771. Mas as denúncias podem ser menores, pela falta de suporte no contexto de isolamento.

Rede de solidariedade

Ganhadora do Prêmio FAC Equidade de Gênero na Cultura em 2016, Hellen atua com rodas e palestras sobre gênero e culturas periféricas, cuidado e autocuidado entre mulheres. Trabalha com assessoria de gênero para o Poder Legislativo e, durante a pandemia, coordena a Rede de Solidariedade do DF.

“Os governantes deveriam executar políticas preventivas, educativas, informativas, e ter um plano de pronto atendimento para dar o suporte necessário às pessoas que já fizeram denúncias de violências. Temos muitos dados da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos. Neste contexto de isolamento social, as pessoas vitimadas estão ainda mais tempo sob o mesmo teto do violentador e com menos chances de denunciar, gerando mais subnotificação”.

Ela acha difícil dissociar os dados de violências na pandemia dos de violência que já acontecem contra parcelas da população já desrespeitadas. “A cada hora, quatro crianças de até 13 anos são estupradas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. São 26 mil partos por ano de meninas de 10 a 14 anos. Todos fruto de estupros. Adultos não podem esperar consentimento de crianças para estupro!”, afirma.

Damares orquestrou o festival de absurdos

Hellen Frida acha que a extremista Sara Giromini, nome real de “Sara Winter”, deve ter os benefícios revistos e voltar a ser presa. A conduta dela em outros casos e, sobretudo, neste da menina do Espírito Santo, é suficiente para enquadrá-la em vários artigos do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

“Ela usou as redes sociais para incitar ódio e provocar aglomerações, divulgou dados sigilosos da menina, expondo e praticando violência contra uma criança de 10 anos, tentando impedir o direito legal dela, expondo a equipe médica e tentando impedir que fizesse seu trabalho de salvar a vida da criança. Temos diversas representações contra ela. Espero que a justiça seja feita”.

Hellen chama a atenção para algo que merece reflexão: “Sara Giromini já teve holofote suficiente e não se deve tirar o foco de quem, possivelmente, orquestrou essa situação. “A nota publicada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado pela ministra Damares, dizia que foram feitas reuniões com atores locais para garantir atendimento à criança e ao bebê. A ministra fala do resultado do estupro como ‘um bebê a ser protegido’”.

Em um país com tantos estupros de crianças, que precisa garantir o direito do aborto a seis crianças por dia, não foi fortuita a ordem dada pela ministra, que é pastora de uma igreja. “A atitude primordial da Damares deveria ser assegurar o direito ao serviço do aborto legal e seguro para a criança, e não emitir sua opinião fundamentalista e indicar sua intenção de proteger um feto, resultado de estupro”, disse Hellen.

A ativista lembra a necessidade de uma intervenção judicial para que o direito e a Constituição fossem assegurados. “Foi a Damares que incitou todo o ‘louvor’ daqueles que se acham acima das leis. Foram os religiosos radicais que violentaram aquela criança, família e equipe médica”, finaliza Hellen Frida.

Brasil Capital

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